terça-feira, 31 de julho de 2012

Sobre a verdade




Os Etíopes dizem que os seus deuses são negros de nariz achatado,
Enquanto que os Trácios afirmam que os seus têm olhos azuis e cabelo ruivo.
Porém, se os bois ou os cavalos ou leões tivessem mãos e pudessem desenhar
E fossem capazes de esculpir como os homens, então os cavalos poderiam desenhar os seus deuses
Como cavalos, e os bois como bois, e cada um esculpiria então
Corpos de deuses, cada qual à sua própria imagem.

E Xenófanes tira desta lição uma importante conclusão crítica; infere que o conhecimento humano é falível:

Os deuses não nos revelaram, desde o início,
Todas as coisas; mas no decorrer dos tempos,
Podemos aprender através da busca, e conhecer melhor as coisas…
Estas coisas são, imaginamos nós, a verdade.

Mas a verdade certa, nenhum homem a conhece
Nem a virá a conhecer; nem a dos deuses
Nem a de todas as coisas deque falo.
E mesmo se, por acaso, pudesse dar voz
À verdade final, ele próprio não a conheceria:
Porque tudo não passa de uma intrincada teia de suposições.


(…)
Uma das principais tarefas da razão humana é tornar o universo em que vivemos algo compreensível para nós. Tal tarefa é a ciência. Há duas componentes diferentes, mas igualmente importantes, neste empreendimento.
A primeira é a invenção poética, ou seja, o contador de histórias ou a formação de mitos: a invenção de histórias que explicam o mundo. (…)
Esta primeira componente, que talvez seja tão antiga como a linguagem humana, é de extrema importância. E parece universal: todas as tribos e todos os povos têm histórias explicativas deste tipo, muitas vezes, sob a forma de conto de fadas. Parece que a invenção de explicações e de histórias explicativas é uma das funções básicas que a linguagem humana deve servir.
A segunda componente da racionalidade é, comparativamente, mais recente. Parece especificamente grega e ter surgido após o aparecimento da escrita na Grécia. Surgiu ao que parece uma única vez: com Anaximandro, aluno de Tales e primeiro crítico da cosmologia. Tratou-se da invenção da crítica, da discussão crítica de vários mitos explicativos – com o objectivo de desenvolvê-los conscientemente.
O principal exemplo grego dos mitos explicativos numa escala elaborada é, sem dúvida, a Teogonia de Hesíodo. Trata-se de uma história bárbara e arrebatadora sobre a origem e os feitos bons e maus dos deuses gregos. À primeira vista não pensaríamos que a Teogonia pudesse dar sugestões que influenciassem o desenvolvimento de uma explicação científica do nosso mundo. Todavia, propus a conjectura histórica de que uma passagem da Teogonia de Hesíodo, prefigurada por outra na Ilíada de Homero, foi usada para esse fim por Anaximandro.
Passo então a explicar a minha conjectura (…)

                                                                                in O Mito do Contexto, Karl Popper




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