domingo, 2 de fevereiro de 2014

A existência de Deus



O papel de Deus no sistema cartesiano - aqui

Depois, tendo refletido que duvidava, e, por consequência, o meu ser não era inteiramente perfeito, pois claramente via que o conhecer é uma maior perfeição que o duvidar, lembrei-me de procurar donde me teria vindo o pensamento de alguma cousa de mais perfeito do que eu era; e conheci com evidência que deveria ter vindo de alguma natureza que fosse efetivamente mais perfeita.


Não me era difícil saber donde me teriam vindo os pensamentos que tinha de muitas outras cousas exteriores a mim, como do céu, da terra, da luz, do calor e de muitas outras, por­que, não notando neles nada de superior a mim, podia admitir que, caso fossem verdadeiros, dependiam da minha natureza, do que ela tem de perfeito; e no caso de serem falsos era de mim ainda que dependeriam, vindos do nada, isto é, do que de imperfeito existe na minha natureza. Mas o mesmo não acontecia já com a ideia dum ser mais perfeito do que o meu; porque tê-la formado do nada era manifestamente impossível; e, porque não repugna menos admitir que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito do que admitir que do nada alguma cousa proceda, não podia também aceitar que tivesse sido criada por mim próprio. De maneira que restava apenas admitir que tivesse sido posta em mim por um ser cuja natureza fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que mesmo tivesse em si todas as perfeições que eu poderia idealizar, isto é, que fosse Deus, para tudo dizer numa palavra. ­
A isso acrescentei que, visto conhecer algumas perfeições que não possuía, não era o único ser que existia (empregarei aqui, se o consentirdes, alguns termos de escolástica), mas que necessariamente devia existir algum outro mais perfeito, do qual dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que possuía. Porque, se eu fosse o único ser, independente de qualquer outro, e de mim próprio tivesse recebido todo esse pouco pelo qual participava do ser perfeito, teria podido dar a mim próprio, pela mesma razão, todo o muito que reconhecia faltar-me, e ser dessa maneira eu próprio infinito, imutável, omnisciente, omnipotente, em suma ter todas as perfeições que atribuía a Deus.
[…]
Depois disso, quis ainda pensar outras verdades, e, tomando por tema a matéria dos geómetras, a qual concebia como um corpo contínuo, ou, um espaço indefinidamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em muitas partes, que podem ter diversas formas e grandezas, pois os geómetras supõem tudo isto na sua matéria, revi algu­mas das suas demonstrações mais simples. E, tendo notado que essa grande certeza, que todos lhes atribuem, se funda apenas em serem compreendidas com evidência, segundo a regra por mim há pouco indicada, notei também que nada existia nelas que me garantisse a existência dos objectos a que se referem.


Porque, por exemplo, eu compreendia bem que sendo dado um triângulo, é necessário que os seus três ângulos sejam iguais a dois ângulos rectos; mas, apesar disso, nada via que me garan­tisse que no mundo existe qualquer triângulo. Ao passo que, voltando a examinar a ideia dum ser perfeito, notava que a existência está contida nessa ideia, do mesmo modo, ou mais evidentemente ainda, que na dum triângulo está compreendido serem os seus três ângulos iguais a dois rectos, ou na esfera serem todos os seus pontos equidistantes do centro; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo como qualquer demons­tração de geometria que Deus, que é esse ser perfeito, é ou existe.

                                            Descartes, Discurso do Método, Sá da Costa

Sem comentários:

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...